TILS ATIVIDADE 02 COMPLETO

Movimentos Sociais Surdos e a Educação: tecendo comentários sobre a proposição da abordagem bilíngüe para surdos Paulo César Machado* Resumo: Os movimentos sociais surdos no Brasil e no mundo têm questionado a visão homogeneizada das sociedades e reivindicam uma política de reconhecimento quanto as suas diferenças. A educação escolar dos surdos é um exemplo. Esse artigo se propõe a tecer comentários de natureza teórica e metodológica implicados numa proposta de educação bilíngüe para surdos, aproximando-se de reivindicações pleiteadas há longo tempo e sistematizadas nos últimos anos, juntamente com os movimentos sociais surdos de Santa Catarina. Palavras-chave: Movimentos sociais surdos. Educação bilíngüe. Proposta de educação em Santa Catarina Social movements of the deaf and education: a bilingual approach to education Abstract: Social movements of the deaf in Brazil and throughout the world have been questioning the homogenized perspective of societies and demanding a policy of recognition of their differences. Schooling for the deaf is one example. This article presents commentaries of a theoretical and methodological nature concerning a proposal for bilingual education for the deaf. It is related to the requests made for many years - systematized in recent years - by social movements of the deaf in Santa Catarina State. Key words: Social movements of the deaf. Bilingual education. Educational proposal in Santa Catarina Introdução Atualmente, vários movimentos sociais no Brasil e no mundo têm questionado a visão homogeneizada das suas sociedades e reivindicam uma política de reconhecimento, tanto de suas diferenças, de suas múltiplas identidades, como de suas desvantagens e desigualdades sociais, oriundas da discriminação social de diversas naturezas. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação de Surdos – NEEPS do Centro Federal de Educação Tecnológica de Santa Catarina- CEFET-SC. Mestre em Psicopedagogia pela Universidade do sul de santa Catarina – UNISUL E-mail: pauloblg@aol.com.br Os movimentos sociais surdos no Brasil e no mundo, organizados em Federações e Associações, exemplificam tal situação. Perlin (2002, p.12), pesquisadora e surda, assume esse propósito entendendo o surdo como, [...] ator principal no processo de celebrar a cultura surda, de lutar pelos direitos à diferença na educação, na política, nos direitos humanos.Trata-se de uma história que os oralistas1 reprimiram por julgarem a si mesmos como identidade única, mas que sobreviveu. Bibliografia: Mottez (1993) identifica a origem dos movimentos sociais surdos nos banquetes surdos que aconteceram em Paris a partir de 1834. Um comitê de dez membros surdos decidiu celebrar o aniversário do abade de L’Epée2 com banquete anual, sendo esse momento um marco milenar da história dos surdos. A história dos surdos, mesmo sem registros plenamente escritos, ainda é vista como dependente da atenção dos ouvintes. É preciso motivar pesquisas que desvelem o papel dos surdos na resistência ao colonialismo3 imposto pela sociedade ouvinte; utilizar-se dos fragmentos existentes e, a partir daí, tecer a história sob os prismas mais diversos superando versões já consolidadas, porém, escritas, na maioria das vezes, sob a perspectiva do discurso médico e lingüístico da surdez. Sugere-se exercitar um olhar desconfiado sobre aquilo que é apresentado e refletir sobre as condições que possibilitaram o aparecimento dessas versões. Tem-se escrito sobre o mundo do surdo com interpretações a partir de diversas temáticas: da educação, do trabalho, da representação, da identidade, revelando-se pontos de vistas que indicam concepções iluministas da surdez, colocando a pessoa surda na condição de deficiente. É a posição ainda predominante na sociedade da normalização do corpo e, conseqüentemente, a subjugação de um grupo cultural. O oralismo é essa história na qual se diz que todo surdo precisa usar a fala do ouvinte, ou que o principal da educação dos surdos é a fala (PERLIN, 2000). 2 A ele se deve a criação/fundação da primeira escola pública para surdos em Paris. Aprendeu a Língua de Sinais com os surdos e utilizou-a em seu método de ensino conhecido como Sistema de Signos Metódicos. De sua escola saíram importantes professores surdos, além do que inaugurou um novo período na história dos surdos (PRESNEAU; FERRAND,1993). 3 Refere-se à imposição da língua e cultura ouvinte para o sujeito surdo.Bhabha (apud PERLIN, 1998) diz que colocar a questão colonial significa ter em conta a questão problemática da diferença cultural e racial. Para ele, posicionar-se contra essa diferença significa colocar na prática a autoridade, através de estratégias discursivas e físicas, o poder discriminatório. Outras concepções são apontadas, para as mesmas temáticas, enfocando a leitura dos autores pós-estruturalistas4 escrevendo sobre o mundo dos surdos e interpretando-o a partir de uma perspectiva política, colocando as relações de poder no centro das discussões, revelando- se a resistência silenciosa da pessoa surda nos movimentos sociais surdos e suas manifestações políticas em direção da práxis das diferenças. Por esse viés a epistemologia5 de Wrigley (1996, p. 25), tenta descrever o mundo do surdo num contraponto apresentado à concepção iluminista: A Surdez é um país cuja história é rescrita de geração a geração. Isto ocorre em parte por causa da condição de suas línguas nativas, em parte mais de 90% das crianças surdas nascem de pais que ouvem e em parte por causa das opressões curiosas e específicas que constituem as histórias dos surdos. As culturas dos sinais, bem como o ‘conhecimento’ social da surdez, são necessariamente ressuscitadas e refeitas dentro de cada geração. Este artigo alinha-se com a concepção teórica do autor citado acima, propondo-se a tecer comentários de natureza teórica e metodológica implicados numa proposta de educação bilíngüe para surdos, aproximando-se de reivindicações pleiteadas há longo tempo e sistematizadas, nos últimos anos, juntamente com os movimentos sociais surdos de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 2000, 2003). Considerando-se o processo de revisão e reestruturação da Educação de Surdos em Santa Catarina, nos últimos anos, tem-se um terreno fértil para reflexões que elucidem os novos planos de ação educacional, o que envolve discussões de políticas educacionais à organização de práticas metodológicas. Dentre as discussões emergentes destaca-se a abordagem bilíngüe de educação num cenário de quase um século de hegemonia da abordagem oralista, uma história de fracassos na educação de surdos. Nesse contexto, os problemas que existem hoje para educação de surdos, em geral, correspondem muito mais a uma definição ideológica a respeito da surdez do que a uma definição de abordagem metodológica. A cultura dos surdos, no aspecto que se utiliza neste ensaio, é aquela inspirada pelo pós-estruturalismo, teorizada como campo de luta entre os diferentes grupos sociais em torno da significação (SILVA, 2000). 5 Wrigley (1996) utiliza a expressão “epistemologia” no sentido foucautiano, ou seja, refere-se às relações de poder e conhecimento. Nessa direção, a mudança de representação6 do surdo e da surdez por parte dos profissionais e também da comunidade (surda e ouvinte) é essencial na formulação de uma proposta bilíngüe. Partindo dessa premissa, uma questão que orienta esta investigação bibliográfica na construção deste ensaio é: Que critérios validam uma proposta de educação bilíngüe, para comunidade surda? A partir dela, podemos fazer inúmeras perguntas que nos remetem a pensar nas pesquisas como construções culturais, ou seja, elas não apenas verificam qual a “melhor” forma de ensinar as pessoas surdas, não apenas verificam como o ensino está sendo conduzido. Elas apresentam um papel decisivo na constituição daquilo que nós devemos entender sobre o que significa apresentar uma proposta de educação bilíngüe, sobre quais temáticas selecionar e quais modos adotar no ensino. Nessa linha de pensamento, o presente estudo buscou contribuições de alguns estudiosos pertinentes à temática em questão. Entre os autores, Wriley (1996), PopKewitz (1994), Silva (1995, 1998, 2000) para elucidar o mundo dos surdos nos estudos culturais, e Fischer e Lane (1993) para referenciar-se na história da educação de surdos e, ainda, Skliar (1996, 1998, 2001), Perlin (1998, 2002) e Quadros (1997) para apropriar-se de questões referentes aos surdos num campo teórico intitulado Estudos Surdos em Educação. Narrativas históricas e a representação do surdo: exercitando um olhar desconfiado As políticas e práticas educacionais, sempre acompanhadas por um compromisso ideológico, levantam o debate em torno da influência educativa presente nas ações escolares. No entendimento da relevância sobre a concepção de surdo e da surdez na proposição de uma abordagem bilíngüe, tem-se como pedra fundamental a compreensão da representação do surdo historicamente construída. A comunidade surda traz uma trajetória de fracasso educacional, um fracasso que não é do surdo, e sim da comunidade ouvinte que, em sua supremacia, sempre definiu os rumos da educação de surdos através de políticas elaboradas longe da comunidade surda. Essa face da história dos surdos soa, no dizer de Wrigley (1996, p. 43), como formas de narrativas de história contada pelos que ouvem, Neste texto assume-se a representação na perspectiva cultural, ou seja, refere-se às formas textuais e visuais através das quais se descrevem os diferentes grupos culturais e suas características (SILVA, 2000). [...] nas quais apenas os nomes e detalhes do status dos que ouvem foram mudados. Pintar psicohistórias de grandes homens lutando para obter um lugar na história das civilizações dos que ouvem tem pouco ou nada a ver com representar as circunstâncias históricas das pessoas surdas vivendo à margem daquelas sociedades que ouvem. Esta história dos surdos é uma decepção, simplesmente reinvocando e reescrevendo a dominação e exclusão que têm mais freqüentemente sido conhecida como “marcadores” da experiência histórica das pessoas surdas. O autor remete a um olhar desconfiado acerca das narrativas históricas, que nos faz pensar a respeito da História oficial escrita sobre as pessoas surdas e, conseqüentemente, a história de sua educação. Parece oportuno refletir a partir de algumas questões: Aquela que foi consagrada como história deve ser aceita quase que “naturalmente” por todos? O que serve de pressuposto a um educador para questionar e refletir sobre outras formas de escrever essa mesma história, bem como sobre outras possíveis histórias que deixam de ser contadas? As perspectivas de conceber um estudo histórico parecem estar relacionadas com as escolhas de narrativas históricas. As narrativas históricas na Modernidade7 têm sido construídas, principalmente, tomando como referência os eventos tradicionalmente eleitos como os mais importantes para cada período e buscando identificar, em cada época, as suas principais personagens. Essa tradição de construção histórica está fundada nas visões positivistas sobre o conhecimento do mundo e na Filosofia da Consciência. Essas duas tradições, criadas pelo Iluminismo, buscaram identificar os atores e os eventos como precursores e causadores de qualquer mudança social significativa e atribuem às explicações que tecem sobre a realidade um caráter de verdade, ou seja, tornam-se como retratos fiéis do que aconteceu (POPKEWITZ, 1994). Enquanto a perspectiva de se conceber um estudo histórico, acima delineada, revela uma preocupação com a busca da verdade e está centrada na busca do epistemológico8, ou seja, de um fundamento último e único, um “outro” estudo histórico poderia ser visto, segundo Wrigley (1996) e PopKewitz (1994), como um problema de epistemologia social imbricado nas relações de poder e conhecimento. Nessa acepção, nega-se a possibilidade de utilização de Época da História iniciada no século XVII. Usa-se neste momento o significado clássico da epistemologia como ciência que estuda as concepções e as teorias do conhecimento, preocupando-se com regras e padrões universais pelos quais são formatados os conhecimentos sobre o mundo. noções como verdade única à investigação histórica, passando-se a buscar enxergar nela as descontinuidades, as rupturas que marcam épocas. Cada época diz respeito às questões em circulação naquele momento. Não são nem melhores e nem piores que os acontecimentos passados. Entende-se que considerar um momento descontínuo em relação a um outro significa dizer que eles não comungam das mesmas regras e padrões de pensamento, ou seja, da mesma epistemologia social. Ela é tomada como social exatamente por estar amarrada às conformações sociais e culturais, não sendo tomada, nesse sentido, como universal e, por isso, como independente da história. A história dos surdos, em especial a Educação, é exemplar para ilustrar essa discussão. A questão do etnocentrismo9 é constantemente marcante na Educação dos Surdos, particularmente na tradição oralista, perpassando, por vezes, de forma fragmentada e questionada nas representações sobre a surdez. Como disse Skliar (1998, p. 7): As idéias dominantes, nos últimos cem anos, são um claro testemunho do sentido comum segundo o qual os surdos correspondem, se encaixam e se adaptam com naturalidade a um modelo de medicalização da surdez, numa versão que amplia e exagera os mecanismos da pedagogia corretiva, instaurada nos princípios do século XX e vigente até nossos dias. Foram mais de cem anos de práticas enceguecidas pela tentativa de correção, normalização e pela violência institucional; instituições especiais que foram reguladas tanto pela caridade e pela benevolência, quanto pela cultura social vigente que requeria uma capacidade para controlar, separar e negar a existência da comunidade surda, da língua de sinais, das identidades surdas e das experiências visuais, que determinam o conjunto de diferenças dos surdos em relação a qualquer outro grupo de sujeitos. Essa história oficial passou a ser problematizada e discutida mais amplamente no contexto educacional. Visto pela epistemologia social, na realidade o fracasso é resultado de uma representação delineada para as pessoas surdas: elas são presas por uma falsa concepção ideológica/pedagógica, são condicionados a se identificarem com essas falsas representações sociais, não podendo comunicar-se, pois têm que aprender como superar a deficiência e serem iguais aos demais. 9 O etnocentrismo tem a tendência de postular a cultura dominante e vigente como padrão para as demais culturas, partindo do princípio de que os seus valores e sua cultura são superiores, os mais adequados. Podem-se escolher perspectivas que favoreçam o sentido cultural e discursivo para o termo “representação”, uma vez que a representação hegemônica em vigência também é construção cultural, naturalizada pela própria condução histórica, o que sugere serem silenciadas outras possibilidades de representar as pessoas surdas. Há inúmeros fios enredados a essas representações e que dizem respeito a outros campos culturais10. A temática da surdez por esse viés alinha-se a um pensamento pedagógico que coloca as questões referentes aos surdos num campo teórico intitulado Estudos Surdos em Educação. Através dele, apresentam-se novos padrões teóricos de educação, apontando para uma representação que reconheça sua cultura e seu papel político na construção de uma educação em que sua identidade surda seja realmente considerada. Assume-se um sentido para representação surda que vai ao encontro dos interesses de uma análise cultural proveniente do campo dos Estudos Culturais. Nesse campo, a representação é entendida como um processo de produção de significados através dos discursos e da linguagem (SILVA, 1995). Essa conotação está intimamente relacionada com o que se convencionou chamar “virada lingüística” ou cultural. A partir dessa compreensão ou descrição da realidade e identidades sociais, passa a ser entendida como constituidora de práticas, de identidades sociais e do nosso entendimento sobre o real (POPKEWITZ, 1994). Por essa significação, Wrigley (1996, p. 40) localiza a peculiaridade e movimento da cultura surda: A natureza “acidental” da cultura dos Surdos de forma alguma diminui a legitimidade das realizações sejam individuais ou coletivas dos surdos. A questão é que a fragilidade dos canais “tradicionais” de transmissão de cultura, tradicionais apenas no sentido de serem somente compreendidos pela cultura dominante dos que ouvem (e dessa maneira, por definição, uma tradição estrangeira para os Surdos), querem dizer que diferentes caminhos têm que ser explorados. Os surdos, tanto individuais como coletivamente, têm buscado esses canais em seus próprios esforços de transmitir linguagem memórias a essência das “culturas”. Pode-se dizer que as produções dos significados nas sociedades – as práticas culturais – são práticas representacionais. Representar aqui não está vinculado a uma ação de Estamos considerando esse conceito em sintonia com muitos estudos advindos do campo dos Estudos culturais e dos Estudos Surdos em Educação (SKLIAR,1998). Isso faz sentido quando entendemos por cultura o conjunto das práticas de significações – de construção de sentidos – existentes nas sociedades (HALL,1997). espelhamento de um real já concebido a priori ou de um sujeito essencial a ser desvendado. A partir de posições diferenciadas de poder, as representações em jogo constituem entendimentos sobre o mundo e sobre nós mesmos. No campo dos Estudos Culturais, as práticas de representação são entendidas como processos sociais de construções de sentidos nas sociedades a partir das relações de poder. Essa perspectiva, inspirada em Michel Foucault, como citou Silva (1998, p. 8), “[...] desloca o foco de análise do poder: do Estado para as inúmeras e polimorfas estratégias de controle da conduta espalhadas nos interstícios do social.” A partir dos pressupostos dos Estudos Culturais, propomo-nos a pensar a surdez numa perspectiva antropológica, colocando-se as discussões referentes à cultura surda atreladas aos movimentos de lutas num espaço multicultural. O multiculturalismo se expressa, como sucessão no mundo contemporâneo, para que os sujeitos sociais valorizem, expressem suas diferenças, suas culturas específicas, em busca de afirmação cultural. É um movimento social em oposição a todas as ações homogeneizadas da vida social. É uma oposição às tentativas dos outros imprimirem a cultura dominante vigente sobre outra cultura preexistente: no caso deste estudo, a Cultura Surda. Exercer um olhar desconfiado é viver o reconhecimento das diferenças que se constroem socialmente. Constituindo-se, muitas vezes, num fecundo movimento de lutas sociais, de ação cultural de um grupo que, possivelmente, por diversas vezes, sentiu-se discriminado, excluído pelos outros segmentos da sociedade por suas particularidades. Nesse espaço também está o Movimento Social Surdo, que luta por mudanças para que cada um possa conviver com as diferenças. Perlin (1998, p. 57) situa nesse espaço a construção da identidade surda: É preciso manter estratégias para que a cultura dominante não reforce as posições de poder e privilégio. É necessário manter uma posição intercultural mesmo que seja de riscos. A identidade surda se constrói dentro de uma cultura visual. Essa diferença precisa ser entendida não como uma construção isolada, mas como construção multicultural. O discurso do reconhecimento das especificidades da comunidade surda, sua língua e sua cultura, historicamente procurou um espaço de inclusão na elaboração das políticas educacionais. As comunidades surdas que estão refletindo e debatendo sobre esse tema defendem a proposta do bilingüismo, com o objetivo de que seja reconhecido o direito da aquisição e do uso da língua de sinais e que, conseqüentemente, possam participar do debate educativo e cultural de sua época em igualdade de condições e oportunidades. O XII Congresso Internacional da Federação Mundial dos Surdos (apud SKLIAR, 1996, p. 5), realizado em Viena no ano de 1995, apresentou como uma de suas conclusões: [...] o oralismo versus a língua de sinais já não é uma questão contemporânea. Nós já transcendemos esta controvérsia e para abordar o próximo século, deixamos o Congresso de Milão11 de 1880 no passado. As tendências de 1995 são: reconhecimento e respeito pela língua de sinais como língua da comunidade surda, e reconhecimento da educação bilíngüe [...]. O posicionamento político dos movimentos sociais surdos tem buscado o reconhecimento da educação bilíngüe, o que tem proporcionado variadas experiências educacionais no Brasil e no mundo. Estarão essas proposições de acordo com as expectativas da comunidade surda? A Educação Bilíngüe: uma possível aproximação das reivindicações dos Movimentos Sociais Surdos As práticas docentes regidas pela filosofia oralista construíram, em quase um século de opressão, uma história de fracassos na educação de surdos. Concomitante a esse predomínio da cultura da fala, a resistência das pessoas surdas permitiu um movimento que possibilitou um repensar da educação. O papel dos surdos, particularmente alunos (que muitas vezes não são identificados) de famosos professores de surdos foi imprescindível, desde o início do uso da língua de sinais (século XVIII), para a construção de abordagens de ensino (PRESNAU; FERRANAD, 1993). Entre os professores, reverencia-se L’ Epée (1712-1789) como um dos mentores dessa construção. No entanto, como questiona Perlin, não cabe a ele o mérito dado pela versão ouvinte, como criador da língua de sinais, deslocando qualquer mérito dos surdos de sua época: 11 O Congresso de Milão (1880) proclamou as leis do método oral puro, ocupando na educação de surdos um espaço de patologia; o potencial lingüístico e cultural da comunidade surda foi desconsiderado, (SKLIAR, 1996). Que história é essa, escrita por ouvintes, que atribui ao Abade francês Charles L’Epée a criação da língua de sinais? Seria ele capaz de criar signos visuais para serem entendidos pelos surdos? Dados históricos mostram que L’Epée não inventou, ele a pesquisou junto a duas irmãs surdas e lhe deu credibilidade entre os ouvintes, como língua com capacidade para ser transmissora de conhecimentos aos surdos (PERLIN,1998, p. 57). Considerando-se o pertinente questionamento da autora citada, mesmo na atualidade é preciso enxergar com os “óculos surdos” para propor a educação bilíngüe. Esse olhar, para o ouvinte, nunca é “natural”; é, sim, sempre interessado, busca enxergar de uma determinada maneira e não de outra. Quase sempre se propõe ver a partir de interesses e “verdades” Na educação escolar, ao longo da história dos surdos, se sobressaem abordagens de ensino como a oralista, a bimodal12, a comunicação total13 e a bilingüista, que devem ser entendidas como diferentes modelos delineados pela ouvintização14. A abordagem bilíngüe, de recente implantação na América Latina e no Brasil, aproxima-se do uso normal da língua de sinais. No entanto, no que tem de filosofia implantada pelo ouvinte, mesmo a abordagem bilíngüe, conserva em suas bases poderes ouvintes (PERLIN, 1998). Visto por essa ótica, é preciso estar atento aos interesses subjacentes de uma proposta, mesmo sendo bilíngüe, uma vez que podem estar direcionados para a adequação dos surdos à Para Skliar (1997), as comunidades surdas que estão refletindo sobre essa temática divergem de propostas unilaterais e defendem um bilingüismo que reconheça o direito de aquisição e uso das línguas de sinais não para serem oralizadas, mas sim para poderem participar com sua própria língua dos debates que circulam a sociedade atual, no nível de igualdade de condições, porém reconhecendo sua singularidade e especificidade. Os Movimentos Sociais Surdos, por intermédio de sua organização política – Associações Regionais, Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS) e Federação Mundial dos Surdos (Word Federation of the Deaf, WFD) - continuam rompendo O bimodal é o método de uso da língua de sinais para ensinar português. Ele cria um novo sistema lingüístico que não o usado pelos surdos: português sinalizado que em parte foi o responsável pela atual situação cambiante de muitos signos e sinais que interferem na estrutura da LIBRAS (PERLIN, 1998). 13 O método de comunicação total admite oralismo, bimodalismo, arte, teatro,em resumo, traz os efeitos do método bimodal citado anteriormente (PERLIN, 1998). com a dominação a quem têm sido sujeitados e pleiteiam espaços na elaboração de uma proposição educacional: Os surdos devem estar implicados no sistema educativo como mestres, administradores, conselheiros e advogados da causa surda, e que o trabalho conjunto entre surdos e ouvintes tem que ser alimentado. (WFD NEWS, apud SKLIAR, 1997, p. 147). Um dos principais fundamentos da educação bilíngüe é a participação igualitária dos surdos nas escolas, dividindo o controle, a administração e o ensino. Isso implica a mudança de pressupostos em relação aos surdos e à surdez. A concepção sócio-lingüística, entendida no resgate da língua como construção cultural, defende um novo debate a futuras alternativas pedagógicas. A surdez constitui-se fenômeno cultural. Esse modelo sócio-antropológico de surdez trouxe para a educação uma possibilidade de renovação das estratégias de ensino, na tentativa de organizar uma Educação Bilíngüe. O bilingüismo inclui em sua proposta uma hierarquização dos objetivos e dos níveis lingüísticos, oferecendo aos surdos, mesmo que de maneira teórica, um acesso completo à língua de sinais e à língua escrita de seu país, e por opção um acesso parcial à língua oral de acordo com o desejo e particularidades de cada aluno. De acordo com Sanchéz (1990, p. 147), não se deve restringir o conceito de Educação Bilíngüe ao simples fato de utilizar dois idiomas na atividade escolar: [...] as situações são extremamente variáveis e complexas, como complexa e variável é a realidade. Tem que se levar em consideração numerosos fatores, o que faz com que a solução educativa não admita receitas nem esquemas simplista. Não existe um modelo bilíngüe universal, pois, se assim fosse, feriria sua própria concepção histórico-cultural de proposta educativa. O que existe são diferentes experiências, distintos processos e mecanismos de Bilingüismo, cujas raízes estão relacionadas aos fatores políticos, históricos, sociais, lingüísticos e culturais de cada país. A complexidade de fatores produz diferentes modelos educativos, com diferentes propostas e objetivos. 14 Sobre Ouvintismo, ver SKLIAR (1998). Skliar (1997) aponta a necessidade de avanços em direção a questões relacionadas com a definição de uma situação educativa como bilíngüe; por exemplo, de que maneira devem ser considerados e organizados, do ponto de vista educacional, os direitos que a comunidade surda tem. O autor indica o bilingüismo como elemento estruturador do conhecimento do surdo, o que envolve aspectos relativos: à identidade do surdo como eixo fundamental; à criação de condições lingüísticas e educacionais apropriadas para o desenvolvimento bilíngüe; à utilização de temas culturais; à promoção do uso da primeira língua em todos os níveis escolares; à difusão da língua de sinais além das fronteiras da escola; à ênfase nos processos de cidadania, destacando a participação do surdo; às ações para profissionalização; aos mecanismos de poder e saber de ouvintes e surdos. Conceber o bilingüismo como abordagem de ensino pressupõe rupturas com paradigmas fortemente arraigados em relação às representações que se cristalizaram quanto às possibilidades e impossibilidades dos surdos além do contexto educacional. E, por essa amplitude, muitas vezes há, na trajetória curricular, tendências a movimentos contraditórios dentro das próprias balizas teóricas, tendo em vista a indefinição de representação da surdez por parte dos proponentes curricular. O currículo para a educação de surdos terá que ser diferente quanto às metodologias utilizadas, ainda que não quanto aos conteúdos e aos objetivos que se esperam atingir através dos mesmos.A pessoa surda não tem nenhum tipo de impedimento, nem físico, nem mental, que a incapacite para a aquisição de conhecimentos escolares; trata-se, portanto, de adequar as formas de fazer, torná-las acessíveis para as pessoas que não ouvem e que falam uma língua, diferente. Por esse viés, a posição de Quadros (1997, p. 32-33) sobre o currículo escolar de uma escola bilíngüe aponta para a inclusão dos [...] conteúdos desenvolvidos nas escolas comuns. A escola deve ser especial para surdos, mas deve ser, ao mesmo tempo, uma escola regular de ensino. Os conteúdos devem ser trabalhados na língua nativa das crianças, ou seja, na LIBRAS. A língua portuguesa deverá ser ensinada em momentos específicos das aulas e os alunos deverão saber que estão trabalhando com o objetivo de desenvolver tal língua. Em sala de aula, o ideal é que sejam trabalhadas a leitura e a escrita da língua portuguesa. Para a autora, o gerenciamento pedagógico em uma situação bilíngüe deve ser conduzido a partir de critérios educacionais que permitam o acesso ao conhecimento sistematizado. Eleger critérios dessa ordem pressupõe subverter a ordem que usualmente se costuma chamar de “problema” da surdez. Nas palavras de Skliar (2001, p. 106-107): Em vez de se considerar como problema a deficiência auditiva, trata-se de compreender os significados – políticos – da normalidade ouvinte; em vez de pensar que a língua de sinais é um problema, analisar o discurso homogêneo dos ouvintes, que faz com que a língua seja considerada um problema; em vez de pensar os surdos como deficientes, compreender que eles vivem uma experiência visual do mundo [...] nos perguntamos: quais os problemas que nós, ouvintes, temos ao pensarmos a educação bilíngüe? quais os mecanismos que nós, ouvintes, temos construído – e/ou inventado – para compreender o bilingüismo dos surdos? Considerando-se sua reflexão, pode-se inferir que a construção de uma proposta bilíngüe está atrelada ao nível de subversão de cada profissional envolvido no projeto quanto ao que se costuma chamar de “problema” da surdez. Este estará inclinado, muitas vezes, a mecanismos de poder construídos por ouvintes sob representações ouvintistas, uma interpretação equivocada sobre a questão das identidades e da cultura surda.Tais equívocos só podem ser elucidados com o debate, a pesquisa, a ação e o compromisso político e social de todos os implicados. Experiências com Educação Bilíngüe: pensando a construção de uma Proposta em Santa Catarina As experiências com educação bilíngüe são recentes. Poucos países têm esse sistema implantado, e o fizeram a partir da década de 1980 do último século. Apesar de surgido na Suécia, foi se alastrando para outros países como Dinamarca, Estados Unidos, Itália, Uruguai e Venezuela (QUADROS, 1997b; SKLIAR, 1999). A aplicação prática do modelo de educação bilíngüe, a considerar as discussões anteriores, não é simples e exige cuidados especiais: formação de profissionais habilitados, diferentes instituições envolvidas com tais questões etc. Os projetos realizados em diversas partes do mundo, a exemplo dos países citados, têm princípios filosóficos semelhantes, mas se diferenciam em alguns aspectos metodológicos. Para alguns, por exemplo, é necessária a participação de professores surdos, o que nem sempre é possível conseguir. Quando se recorre a professores ouvintes, na maioria das vezes sua competência em língua de sinais é insuficiente, comprometendo significativamente o processo de aprendizagem. No Brasil, as experiências estão em processo em diversos estados do país, apresentando questões de ordem teórica e metodológica semelhantes a de outros países. Buscando seus direitos educacionais, o Movimento Social Surdo propôs, junto à Secretaria de Educação, algumas diretrizes para a Educação de Surdos em Santa Catarina, com o objetivo de rever a política atualmente em vigor. A principal meta é garantir a utilização da língua brasileira de sinais e respeitar a especificidade cultural das comunidades surdas (SANTA CATARINA, 2000, 2003). Ao propor essas diretrizes, o Movimento Social Surdo indica, ao longo de suas considerações, elementos para um modelo de bilingüismo idealizado pelos surdos, tais como: a) melhores condições viabilizadas pelo domínio da língua de sinais pelos professores e por toda comunidade escolar; b) melhores condições de ensino-aprendizagem, decorrentes da presença do professor surdo e/ou professor ouvinte com intérprete em sala de aula; c) construção da identidade surda e preservação da cultura surda na convivência com seus pares; d) aumento da auto-estima e confiança, sentimentos positivos que emergem quando a pessoa aprende na escola, quando se sente capaz. Aproximar-se desse modelo requer uma mudança ideológica. A qualidade do trabalho pedagógico mantém estreita relação com o domínio da língua de sinais e uma perspectiva de trabalho sócio-antropológico que entenda o surdo como sujeito culturalmente constituído em sua comunidade. De acordo com Sanchez (1990, p. 148): Todo surdo necessita de um ambiente em que se fale de maneira natural, fluida e espontânea sua língua nativa. Estas condições não se dão em igual forma para criança surda. É preciso criar este ambiente, que estará formado por falantes da língua de sinais natural do lugar em que vive a criança [...]. É esta a primeira e mais importante tarefa para iniciar a implementação de um modelo educativo bilíngüe. Nesse sentido, a presença de professores surdos constitui um critério preponderante para a construção e aplicação de uma proposta educacional que vise assegurar ao aluno surdo o direto a uma educação verdadeira. Não basta a participação de um professor surdo para que desenvolva, em horários alternados, atividades com o aluno. O ingresso de professores surdos na comunidade educativa tornar-se-á imprescindível nas tomadas de decisões que envolvam estruturação e implementação curricular, bem como no debate com relação às questões da gestão de políticas educacionais para surdos. É através da intervenção do professor surdo, considerado como adulto competente lingüística e culturalmente, que será criado um espaço possível de aprendizado compartilhado, tendo como instrumento uma identidade de comunidade. Além da relevância da intervenção do professor surdo, o processo de implantação de um modelo de ensino bilíngüe para Surdos vem exigindo iniciativas e aprofundamentos sobre a aprendizagem do estudante surdo. Analisar o aprender do surdo inclui, necessariamente, a análise do projeto político- pedagógico institucional, tanto em suas propostas de ensino como no que é valorizado na aprendizagem. A ampliação dessa leitura, através do aluno, permite abrir espaços para que se disponibilizem recursos que façam frente aos desafios, isto é, na direção efetiva da aprendizagem. Esses desafios são inerentes a algumas características que são próprias da comunidade surda de Santa Catarina e, por outro lado, dos profissionais que atuaram, em anos anteriores, na educação de surdos fundamentados em outras abordagens de ensino. Frente a essas características, ressaltam-se, no processo de implantação da proposta da abordagem bilíngüe no Estado de Santa Catarina, pelo menos três aspectos para reflexão. Um primeiro aspecto a considerar é a dificuldade para apropriar-se dos conteúdos programáticos por parte de alguns alunos. Essa possível dificuldade de apropriação dos conhecimentos pelo aluno surdo relaciona-se com algumas razões fundamentais, a saber: a) a educação oralista dificultou uma aquisição adequada da linguagem e da capacidade de conceituar; b) a impossibilidade de comunicação a que estiveram submetidos ao longo de sua história de vida, influenciou seu entendimento do mundo, sua incorporação de valores sociais e seu manejo de sentimentos; c) a meta na oralização, e as práticas conseqüentes, produziram influências quanto a sua própria auto-estima, conduzindo-os a pensar que só parecendo-se aos ouvintes poderiam ter a possibilidade de realização na vida. As conseqüências dessas questões, a partir do primeiro aspecto citado, poderão refletir- se diretamente em pelo menos dois entraves para a aprendizagem desses alunos, e da maioria dos surdos que estão submetidos a situações semelhantes, expressando a realidade existente: a) os surdos apresentam dificuldades para utilizar, de maneira adequada, a leitura e a escrita de seu país; b) os surdos apresentam dificuldade de expressar um conceito na língua de seu país, o que se faz patente no estudo de todas as disciplinas e gera dúvidas a respeito de sua capacidade de conceitualização abstrata. Como segundo aspecto a considerar na implantação da proposta bilíngüe, aponta-se a quantidade de informações de diferentes áreas de conhecimento representadas pelas disciplinas e as respectivas didáticas propostas pelos professores, bem como a atuação do intérprete com os professores ouvintes. A dinâmica multiprofissional de uma proposta pedagógica que envolve professores ouvintes de diferentes áreas de conhecimento e a atuação do intérprete da língua de sinais exige relações entre os profissionais na implantação do projeto bilíngüe que está em construção e gera algumas indefinições, sobreposições e outros problemas próprios dessa etapa do processo de uma proposta pedagógica. Ressaltam-se alguns indicativos e necessidade de aprofundamento de estudos, a saber: a) o professor e o intérprete no espaço da sala de aula e a mediação da aprendizagem; b) o intérprete e sua atuação nas atividades pedagógicas, bem como sua atualização na língua de sinais para elaboração conceitual e efetiva tradução lingüística das diferentes áreas de conhecimento; c) o professor da disciplina e sua iniciação aos conhecimentos sobre a cultura surda e suas implicações na educação de surdos. As conseqüências dessas questões ligadas aos profissionais que efetivam a educação bilíngüe para surdos podem refletir-se diretamente em pelo menos dois entraves para o processo ensino-aprendizagem: a) o afinamento de trabalho entre o professor e o intérprete para mediar o conhecimento para o aluno; b) o desconhecimento dos professores implicações no processo ensino-aprendizagem. acerca da diferença surda e suas E, por fim, o terceiro aspecto referido remete-se ao desconhecimento da importância da língua de sinais para o desenvolvimento cognitivo do surdo. A hegemonia oralista, como resultado de uma política historicamente determinada no estabelecimento de uma normativa ouvinte no processo de aprendizagem dos surdos, que “normaliza” e homogeneíza o aluno surdo, negando sua identidade, sua língua e sua cultura. As conseqüências deste terceiro aspecto colocadas podem refletir-se diretamente em pelo menos um entrave ideológico em uma proposta de educação bilíngüe para surdos: o etnocentrismo dos ouvintes e suas implicações na atuação educacional. Compreende-se que os três aspectos mencionados estão diretamente implicados no processo de ensino-aprendizagem do aluno proposta de educação bilíngüe para surdos e, por isso, precisam estar em foco nas avaliações conjuntas entre a comunidade surda catarinense e a Secretaria de Educação do Estado. Não se esgota nos aspectos anteriormente citados a pauta a ser discutida quando a temática é o processo de implantação de um modelo educacional bilíngüe. No entanto, quaisquer que sejam os critérios que validam uma proposta de bilingüismo, o professor surdo e o intérprete, este último na ausência do primeiro, serão personagens imprescindíveis na construção do processo. Dessa forma, focaliza-se como prioridade de encaminhamento a viabilização da formação desses profissionais, em especial os professores surdos, para que possam deliberar sobre as questões da sua educação. Isso não significa um incentivo à guetização, mas sim ao direito a uma educação que reconheça a história, a língua, a cultura.da comunidade surda. É através de um ensino que atenda as especificidades que poderá haver integração social. surdo e no processo de construção de uma Considerações Finais Os comentários que constituem este texto não se propõem a resultados, mas sim a ampliar as discussões em relação à abordagem de ensino bilíngüe para surdos. Procurou-se, a partir das reivindicações dos Movimentos Sociais Surdos, alinhar a complexa trama de uma construção educativa para os surdos, desde os surdos e junto aos surdos. As publicações de ensaios sobre a educação bilíngüe para surdos no Brasil e no mundo permitem interpretar que essa abordagem de ensino não parece assumir, ainda, um modelo contínuo ou homogêneo, mas, pelo contrário, apresentam diferentes alternativas e matizes de organização institucional, de mecanismos didáticos, de relações entre as línguas e, fundamentalmente, de objetivos pedagógicos (SKLIAR, 2001b). A descontinuidade entre os modelos bilíngües na educação de surdos abre um espectro de questionamentos que sugerem pesquisas que desvelem o papel dos surdos na resistência ao colonialismo imposto pela sociedade ouvinte e aproximem das expectativas da comunidade surda uma proposta de educação. Interessar-se por viés é assumir uma perspectiva política, subjacente à proposta curricular, colocando em foco as relações de poder entre surdos e ouvintes. É ancorar-se em referências que pressupõe outra representação surda como diferença cultural. Nesse sentido, colocando-se em foco a reestruturação da educação de surdos em Santa Catarina, teceram-se alguns comentários pertinentes à condução do processo de implantação de tal proposta, aproximando-se das reivindicações do Movimento Social Surdo, apontando-se como um dos fundamentos da educação bilíngüe a participação igualitária dos surdos nas escolas, dividindo o controle, a administração e o ensino. É preciso avançar com avaliações sistemáticas elaboradas pela comunidade surda e a Secretaria de Educação de Santa Catarina no sentido de diagnosticar desvios que comprometam a filosofia bilíngüe no processo educacional. Desencadear um processo de reestruturação na abordagem de ensino bilíngüe é, na verdade, apenas o início de uma discussão que, necessariamente precisa superar a problemática das línguas e partir para um projeto político educacional que abrirá um debate no qual os proponentes deverão interagir com a comunidade, o que exigirá posições políticas transparentes de todos envolvidos. Até que ponto se está aberto a esse debate? A educação bilíngüe não é um ponto de chegada, mas, sim, de partida. Para os surdos e ouvintes que trabalham com os surdos, e para os surdos que trabalham com outros surdos, serem bilíngües não representa muito, se a situação exposta não for acompanhada e analisada de uma dimensão política. Essa dimensão política implica em mudar o olhar sobre a surdez. E o que muda com os novos olhares sobre a surdez? No dizer de Skliar (1998, p. 7): A mudança registrada nos últimos anos não é, e nem deve ser, compreendida como mudança metodológica dentro do mesmo paradigma da escolarização. O que está mudando são as concepções sobre o sujeito surdo, as descrições em torno da sua língua, as definições sobre as políticas educacionais, a análise das relações de saberes e poderes entre adultos surdos e adultos ouvintes. Por fim, pode-se dizer, tomando por base os argumentos apresentados dentro do enfoque bilíngüe, que delinear um modelo de ensino para a comunidade surda é um processo extremamente complexo, pois além de trazer implicações de diferentes ordens, envolve diferentes dimensões do processo educacional. Mas sua complexidade deve ser um estímulo, nunca um freio, para a continuidade e aprofundamento do debate. Afinal, todos (ou quase todos?) os aspectos da realidade humana são extremamente complexos, e nisso reside sua riqueza e desafio. ..................................................................................... .......................................................................................................................................................................... REFERÊNCIAS: .......................................................................................................................................................................... BHABHA, H. A questão do “outro” diferença, discriminação e o discurso do colonialismo. In HOLANDA, H. B. de (org.). Pós- modernismo e cultura. Tradução de The location of culture. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. FISCHER, R.; LANE, H. Looking Back: a read on the History of Deaf Communities and their Sign languages. International Studies on Sign Language and Comunication of the Deaf. V. 20. Hamburg: SIGNUM-Verlang, 1993. 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