sexta-feira, 27 de março de 2015

UMA ESTUDANTE DE MEDICINA MUITO ESPECIAL

UMA ESTUDANTE DE MEDICINA MUITO ESPECIAL

Retomando o Crônicas com força total, quero mostrar para vocês o contato interessantíssimo de umaleitora surda que está quase se formando em  Medicina!
“A vida de uma estudante de Medicina surda é cheia de emoções – como a de qualquer estudante de medicina, com o diferencial de escutar pouco! O primeiro e segundo anos são tranquilos, porque é ciclo básico. A partir do terceiro, o bicho pega:  entra a clínica médica (passamos a ter contato com pacientes, aprendemos a examinar, etc). O grande problema são as famosas bulhas cardíacas… Se acadêmicos normais se confundem e têm dificuldade de diferenciar uma B3 de uma B4 no início,imagine eu! Lanço mão do meu esteto hi-tech (ahahah) e consigo me virar numa boa, mas claro que me confundo e posso deixar passar… Mas aí entra o bom senso que me impede de ser cardiologista, pneumologista ou algo do gênero, né? Obviamente levarei isso em conta na hora de escolher minha especialidade, não há como ignorar isso. Penso em fazer otorrinolaringologia, seria irônico, não? Ano passado andei assistindo a algumas cirurgias, juntamente à equipe, e me encantei. Só tinha um porém: as máscaras cirúrgicas me impedem de fazer leitura labial, impossibilitando qualquer comunicação na sala de cirurgia, a menos que a pessoa fale no meu ouvido, coisa que não ocorre na prática…E como sabemos, médicos falam durante a cirurgia.  Acabei por consultar um médico do hospital, meu tutor e confidente sobre questões acadêmicas. Ele me disse que SIM, terei dificuldades mil se quiser optar pela cirurgia, pois não somente a comunicação será afetada, mas posso encontrar colegas pouco afeitos à colaboração com deficientes e pouco pacientes… Porém, ele me deu uma luz: se quiser, de fato ser cirurgiã, faça uma especialidade em que você possa operar sozinha, como otorrino, oftalmo, dermato… Fiquei mais tranquila de saber que sim, posso ser cirurgiã. Pensei que fosse “penar” na mão dos professores, por não ouvir, mas até o presente momento, foram todos solícitos e compreensivos. Ficam curiosos com minha capacidade de me virar, e não raro, me elogiam pela perseverança. Fico emocionada quando me elogiam pelo meu esforço e me chamam de vencedora. Não me considero uma vencedora, ainda há muito o que trilhar.
Muito bom aprender a lidar bem com isso, espero poder ajudar outros a superar também. Fico muito feliz com minhas conquistas; estudei sempre em colégios regulares sem repetir nenhum ano, falo inglês fluentemente (se me entendem são outros quinhentos, hahahah), e consegui entrar para umafaculdade pública de medicina em 2007. Esse foi um capítulo à parte, foi meio uma polêmica na minha família. Chegaram a me dizer que não poderia fazer medicina, pois por não ouvir poderia pôr a vida de outros em risco. Retruquei que limite é coisa imaginária, e fui em frente. Não tenho grandes dificuldades, mesmo na ausculta, pois meu estetoscópio é amplificado. Me formo em 2012, se tudo der certo. Ver meus sonhos realizados a despeito das dificuldades não tem preço…a vitória é até mais doce! Acho que você entende o que quero dizer, né? :)
Quanto a situações ruins, já vivi várias, infelizmente. A maioria se deu no colégio (o que hoje leva o nome modernoso de bullying), e serviu para me fazer amadurecer mais rápido. Quando estava sem aparelho, ficavam me chamando, só para rirem quando eu não respondia. Até cutucar meu aparelhojá fizeram. Riam da minha forma de falar (antes de fazer fono e melhorar 90%) e também por eu ser anerd da turma e queridinha/protegida dos professores, que apostavam em mim e sempre me faziam sentar na primeira carteira. Educação física era inferno na Terra, porque não ouvia os lances. Não basta a criança ser “diferente” e sofrer internamente por isso (porque todos queremos, no fundo, ser igual à maioria), ainda precisa sofrer com piadas de mau gosto e grosserias várias. Triste.
Na faculdade, por serem mais velhos, essas atitudes pueris não ocorrem mais, mas há, sim, um certo preconceito por parte de alguns, ainda que veladamente. Há pessoas que acham que médico tem que ter todos os sentidos íntegros e ponto final. No entanto, encontro lá anjos que me ajudam muito, me cedem lugar à frente quando chego atrasada e não tem lugar (mesmo sem eu pedir), repetem coisas que falam e não escuto, etc. É muito bom se sentir acolhida e compreendida, ainda que por poucos. Acredito, sim, que haja piadinhas por trás, pois gente pequena sempre irá existir. Felizmente, não é maioria na minha turma, que acredito que em sua maior parte torça por mim.
E você, Paula? Sofreu preconceito também? Conta! :)
Beijos!”

Escrevo o Crônicas da Surdez desde 2010, e também escrevo o blog Sweetest Person desde 2007. Sou bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria, funcionária pública, escritora e blogueira. Moro entre Santa Maria (RS) Rio de Janeiro e  tenho 33 anos. Meu diagnóstico é de deficiência auditiva bilateral neurossensorial e progressiva. Tenho um Implante Coclear no ouvido direito e uso AASI no ouvido esquerdo.










mAIS INFORMAÇÕES: http://cronicasdasurdez.com/uma-estudante-de-medicina-muito-especial/